terça-feira, 12 de maio de 2009

Vida de Gado, por Pedro Oliveira

Quem ler vive mais, diz o poeta. E vive de fato quem tem consciência da realidade vivida; quem infere sobre a vivência; quem interfere na convivência.
Lendo Os Irmãos Karamázov de autoria do mestre da literatura universal, Dostoiévski, que neste 28 de janeiro se completam 128 anos de seu silêncio, suscitou-me o desejo de partilhar alguma conclusão com quem interessar. Sem dúvida, a leitura desta obra é fundamental para a sobrevivência de quem quer se desviar da onda do “deixa a vida me levar.”
A referida produção está centrada num dilacerante conflito no seio de uma família nobre da sociedade russa por meio do qual o autor descreve o quadro de decadência dos princípios éticos e valores sociais da época (séc. xix).
O drama familiar em questão é costurado pelo tema mítico do parricídio, fenômeno provocador da sensibilidade humana, desencadeador das mais diversas reações e reflexões.
A trama tem lugar na imaginária cidade de Skotoprigonievski, um nome cuja tradução indica local em que o gado é recolhido, ou simplesmente feira de gado. Por ser uma realidade paradigmática, esta cidade assume caráter universal, está em todo lugar e seus habitantes, como gado, sobrevivem encurralados.
Parricídio, ato deplorável, ignominioso...! Assim é encarado nas mais diferentes culturas. Resultante de todo o tipo de sublevação dos valores humanos e da sociabilidade: má criação, desestruturação da família modelar, descarte da figura do pai... Eis a grave problemática enfrentada pela humanidade no mundo moderno onde tal fenômeno, detestável no plano objetivo, adquire formas aceitáveis numa dimensão subjetiva: é o que se pode classificar de parricídio social.
As transformações trazidas pela modernidade implicaram novos valores que atingiram de cheio a família tradicional desencadeando, em particular, uma crise à figura do pai.
Num mundo em que a sensualidade é absolutizada como fonte de prazer, o ser pai acaba resultando do desvario do instinto, de relacionamentos prematuros, descomprometidos, egoístas e hedonistas. Em conseqüência disso surgiu uma sociedade sem pai ou de pai ausente.
Dostoiévski ad mirando o real significado do ser pai assim pergunta: “o que é um pai, um de verdade, que palavra tão grandiosa, que idéia tão formidável há nesse nome?!” A paternidade não é apenas algo instintivo, biológico, mas é, sobretudo, expressão de livre decisão pessoal, de compromisso com a vida. Ser pai implica presença conseqüente.
A falta da figura do pai desestrutura, debilita, fragiliza os filhos; gera desequilíbrio da formação pessoal, delinqüência, uma vez que o pai é a personificação simbólica das atitudes necessárias para a afirmação do indivíduo como pessoa e como ser social.
Na ausência do pai a missão que antes lhe era imputada, agora é delegada ao Estado que através de seus instrumentos de repressão, disciplina, ordena e conduz a vida social tal qual o criador à frente de seu rebanho. “Ê, vida de gado...”
Quem sabe seja por isso que o nosso Machado de Assis, contemporâneo de Dostoiévski, tenha dito através de um personagem de sua criação literária o que sentia por não ter sido pai. Assim, Brás Cubas nas próprias Memórias Póstumas, exprima sua vitória sobre a vida ao afirmar: “– Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”

Pedro Oliveira da Silva é Professor de História na Rede Municipal de Ensino de Teresina/PI

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